18 de março de 2008

Circo de Horrores

Já tenho quatro anos como policial. Não posso dizer que sou experiente, mas tampouco posso me intitular novato. Já vi corpo crivado de munição, contorcido de tal forma que a própria física duvida. E já vi corpo decapitado segurando a própria cabeça ao colo, sentado no chão sujo de um banheiro de penitenciária. Vi corpo transformado em pedacinhos, guardado em oito sacolas de supermercado e enterrado no chão da cela. Vi marido enlouquecer por capotar o seu veículo lotado e morrer apenas quem mais importava, a esposa e a filha de três anos. Vi vítima de disparo de espingarda calibre 12 me olhando com um olho só. O outro olho? Não sei onde foi parar, juntamente com a outra metade do rosto. Vi bêbada blasfemar o nome do Senhor entre um arroto e outro. Vi homem bater em mulher, não apenas uma, mas várias vezes, vários homens, várias mulheres, a mesma história infeliz. Vi mulher esfaquear homem por motivos que, de tão ridículos, não há como serem citados. Vi mulher bater em mulher, e desta feita não fiquei chocado, ri até doer o estômago com os tufos de cabelos de uma na mão da outra. Vi adolescente ser vítima de estupro, bem como vi menino ser vítima da mesma violência, só que pela lei tem outro nome, chama-se ato obsceno diverso da conjunção carnal, mas é a mesma humilhação, a mesma dor. Vi um jovem, repleto de narcóticos na cabeça, vomitar a delegacia inteira e depois deitar no próprio vômito. Vi mulher entrar no presídio com um celular. Não, não estava no bolso, ela achou que era um canguru e aconchegou o aparelho dentro do próprio corpo. Não, não foi na frente, foi atrás. Já socorri vítima de acidente de trânsito, já levei grávida ao hospital, já conduzi doente mental ao sanatório, já vi pessoas entristecidas enforcarem-se em casa ou jogar-se de prédios, liquidificando os seus corpos e infortúnios, já fui ameaçado por menor de idade que me disse que logo sairia de detrás das grades e me acharia nem que fosse no inferno, já prendi bandido num dia e o encontrei dois dias depois vendendo ingresso como cambista em porta de show, já vi colega morrer na mão de marginal, já trabalhei trinta e seis horas sem parar, já tive que tomar remédio para poder dormir uma noite de sono tranqüila, já tive que arrumar um trabalho extra para poder pagar as contas, já fiz greve, e como resposta me mandaram estudar mais para ganhar um salário melhor. Estudar mais o quê? Tenho graduação e pós-graduação. Era noite, todos dormiam, e lá estava eu, no meio do nada, esperando a quadrilha que anda melhor armada do que eu passar para prendê-los, e foram presos. Era noite, todos festejavam o início do ano, e eu estava lá convencendo um bêbado rico em dinheiro e em relacionamentos que o melhor a fazer era deixar um registro banal de ocorrência para o dia seguinte, pois ele mal conseguia lembrar o próprio nome, e fui chamado à atenção poucos dias depois, descobrindo dessa forma que nesta vida mais vale dinheiro e bom relacionamento do que bom senso. Dizem que ser policial é um sacerdócio, e querem dizer com isso que essa profissão cobra seus sacrifícios, inclusive financeiros. Balela! Não somos padres ou irmãs de caridade, nem ao menos somos santos. Somos seres humanos, homens e mulheres que possuem suas certezas, dúvidas, alegrias, tristezas, medos, e toda sorte de necessidade como qualquer um. Somos profissionais dedicados, formados e especializados. Enquanto a maioria esmagadora da população assiste ao circo de horrores do cotidiano da violência pela televisão, via Embratel, by technicolor e em doses homeopáticas no horário nobre, nós, policiais, o assistimos ao vivo, em cores, em doses cavalares durante todo o dia. Esse circo entra na pele, vira tatuagem, nos envolve como se fosse abraço de urso. Nós acordamos e dormimos com ele e temos nossos pesadelos. Não reclamo, amo o que faço, faria tudo novamente, e quero continuar fazendo até o dia em que eu morra velhinho ou entre para as estatísticas de policiais mortos em serviço. Não importa, foi a vida que escolhi. Mas, quanto vale um profissional desses? Que salário o profissional de segurança pública deve receber para proteger você? É essa a pergunta que faço e não ouso calar enquanto não receber resposta.
Gravura por vhm-alex, deviantart.com

3 comentários:

Letícia disse...

Vida árdua essa dos que protegem vidas. Não sei, nem saberia dosar quantias para se fazer valer o trabalho de alguém que se arrisca por outros. Tanto altruísmo, tanta dedicação e sei que não há reconhecimento. Profissionais como você, como outros, como muitas exceções que levam a sério suas obrigações, merecem da sociedade, do poder público e do que mais possa surgir, merecem algo mais que charges em jornais ou meros comentários em blogs. Merecem dignidade e também uma vida que possa ser vivida sem o retalhar da partilha inexata do dinheiro. Sinto e sei o quanto é difícil trabalhar sem receber o que nos é devido. E sinto também que sua profissão exige traços de fraternidade e bondade que poucos conseguem atingir - pois creio que armas e a maldade que anda por nosso mundo, não têm piedade e castiga a todos.

João,

Espero que alguém traga a resposta. Só posso dizer que seu texto é o retrato do que tentam esconder sob o jornal de ontem. Mas muitos conseguem enxergar.



E um poema de nossa geração para falar o que não se pode calar...

Nosso dia vai chegar,
Teremos nossa vez.
Não é pedir demais
Quero justiça,
Quero trabalhar em paz.
Não é muito o que lhe peço
Eu quero trabalho honesto
Em vez de escravidão.
Deve haver algum lugar
Onde o mais forte
Não consegue escravizar
Quem não tem chance.
De onde vem a indiferença
Temperada a ferro e fogo?
Quem guarda os portões da fábrica?
O céu já foi azul, mas agora é cinza
E o que era verde aqui já não existe mais.
Quem me dera acreditar
Que não acontece nada de tanto brincar com fogo.
Que venha o fogo então.
Esse ar deixou minha vista cansada,
Nada demais.

(Legião Urbana in, Fábrica)

Bjs, Amigo.

Camilla disse...

Vale o muito que as mentes subversivas acham que vale: MUITO! Só que a resposta que você quer vale outra pergunta: quanto vale qualquer um de nós? Quanto vale quem vê o que você vê em metáforas diárias de crueldade, sentados atrás de uma mesa,em radações,nas ruas, correndo tanto risco de vida quanto você.Talvez risco de perder a saúde mental.
Querido Sr. Policial com todo respeito, a vida de nenhum de nós vale porra nenhuma no Brasil. Quiçá no mundo. Mas aqui é um pouco pior, pois no meio de quem ama o que faz como você, existem os que não amam nada, não amam ninguém e fazem de nós, nós todos, estatísticas de quinto mundo. Eu sinto muito, por você, por mim, por todos nós e por tudo isso.
Obrigado pela sua visita e te espero no meu outro endereço também, de preferência quando estiver desfrutando de alguns dos seus minutos de paz. É www.essepapo.nafoto.net.
Sorte, muita sorte pra vc!!!
Camilla Tebet

Perdi meu medo da chuva. disse...

Bom,se vc acredita que esse é o país do futuro,só posso te dizer:Tenha esperança e fé.Nosso dia vai chegar.